Dom Murilo Krieger- Arcebispo de S. Salvador da Bahia
No princípio da História, o homem e a mulher descobriram o fogo, inventaram a roda e submeteram os animais a seu poder. Moravam em cavernas e construíram abrigos que os protegiam do sol, da chuva e do vento. Ao longo do tempo, transformaram suas refeições em momentos de confraternizações e alegria, revelaram o seu bom gosto através de roupas e de obras de arte, e aperfeiçoaram a comunicação. Tentando traduzir seus sentimentos mais delicados, passaram a expressar-se por meio da poesia e da pintura, da escultura e da música, da dança e do teatro. Estabeleceram limites à ação de cada pessoa na vida da comunidade e fizeram da liberdade uma bandeira., dispondo-se a dar a vida para permanecerem livres.
Mas que desconcertante ser é o homem e a mulher! Hoje, ao mesmo tempo que passam vários anos dentro de um laboratório à procura de uma vacina que acabe com uma doença incurável, dedicam-se igualmente a descobrir uma arma que mate mais pessoas em menos tempo, e orgulham-se de seu poder de exterminar em poucos segundos esse mundo que tanto amam.
Escrevem inúmeros livros sobre a beleza da flor, o voo dos pássaros, e o por do sol e, ironicamente, suas cidades são marcadas pela poluição, e a natureza, que os serve, é sistematicamente arrasada. Capazes de amar apaixonadamente, concentram todos seus recursos no desconhecido que se perdeu na floresta e deixam, a seu lado, milhares de pessoas morrerem de fome. Pesquisam a matéria, desintegram o átomo e debruçam-se sobre a sua própria mente; fascinam-se com os recursos da tecnologia, enviam robôs a outros planetas e maravilham-se com o próprio poder; no entanto, se escravizam à matéria.
Presos a um mundo de contradições, descobrem, em si próprios, facetas desconhecidas. Se um incêndio domina um prédio, se uma criança está ameaçada de ser arrastada pelas águas ou se um morro se transforma em lama e desce por favelas e cidades, surgem inúmeros homens e mulheres que se transformam em heróis, que comandam ações, arriscam suas vidas e fazem do sofrimento alheio sua própria dor. Pouco depois, esses mesmos homens e mulheres são capazes de atos de maldade inimagináveis: matam uma criança no ventre materno, roubam dinheiro destinado à saúde dos mais pobres e eliminam a vida de quem os fechou no trânsito.
Sendo ao mesmo tempo um abismo de bondade e de miséria, procuram o bem que lhes escapa ( “não faço o bem que quero”, diria São Paulo) e sentem-se dominados pelo mal que detestam ( “mas faço o mal que não quero”). Essa dilaceração interna os obriga a lutar pela própria unidade a cada dia e a buscar a sua identidade a cada passo.
“Quem me livrará deste corpo mortal? ” A pergunta do apóstolo Paulo passa a ser a de cada homem e mulher. O sonho de paz, nesta vida marcada por riscos e aventura, parece não passar de uma bela utopia. Profundamente insatisfeitos, apelam para deuses criados à sua imagem e semelhança e os adoram. No entanto, não ouvem o apelo do Deus verdadeiro, que tanto os ama, que lhes dá seu próprio Filho: “Jesus Cristo, existindo em forma divina, não se apegou ao ser igual a Deus, mas despojou-se, assumindo a forma de escravo e tornando-se semelhante ao ser humano. E encontrado em aspecto humano, humilhou-se, fazendo-se obediente até a morte e a morte de cruz!” (Fl 2, 6-8). Tendo percorrido os caminhos da humanidade, o Salvador se apresentou como “caminho, verdade e vida”. Ele é o único que tem condições de saciar a fome de infinito, profundamente enraizada no coração humano.
Sem concorrentes na criação, o homem e a mulher são capazes de estabelecer com seu Senhor um relacionamento pessoal e amoroso. Mas são também as únicas criaturas que podem lhe dizer um “Não”, e repeti-lo ao longo de toda a vida.
Que estranho, desconcertante e maravilhoso ser é o homem e a mulher! Que estranho, desconcertante e maravilhoso ser é você!